domingo, 12 de junho de 2011

DUAS VIDAS

DUAS VIDAS

Esta história é dedicada a todos os miúdos, mutilados no corpo e na alma, por guerras sem sentido,e a todos aqueles que lutam diáriamente para os ajudar.

Suku-Nzambi criou aquele mundo. Aquele e outros, todos os mundos. Suku-Nzambi, cansado pôs-se a dormir. E os homens saíram da Grande Mãe Serpente, a que engole a própria cauda.
Feti, o primeiro, no Centro foi gerado pela serpente de água e da água saíu. Nambalisita, no Sul, do ovo saíu, partindo a própria casca. Namutu e Samutu, os dois gémeos de sexos diferentes, pais dos homens do país lunda, da serpente mãe directamente saíram.
A obra de Suku-Nzambi estava completa. Mas nunca se interessou por ela. E a obra de Suku-Nzambi parecia esquecida de viver.
Até hoje os homens, parados, atónitos, estão à espera de Suku-Nzambi. Aprenderão um dia a viver? Ou aquilo que vão fazendo, gerar filhos e mais filhos, produzir comida para os outros, se matarem por desígnios insondáveis, sempre à espera da palavra salvadora de Suku-Nzambi, aquilo mesmo é vida?
In “Parábola do cagado velho”
Pepetela

João Simanco, estava há algum tempo sentado num dos bancos, debaixo daquele enorme caramanchão coberto de buganvílias, logo a seguir ao Porta-Aviões, na Praia Morena. ( O mesmo caramanchão, para onde fui tantas vezes namorar, e que ficará para sempre ligado ao Let´s Twist Again. Foi aí que o ouvi pela primeira vez, e talvez por isso, sempre que o ouço, sou invadido por uma enorme nostalgia.)
Tinha adquirido esse hábito, alguns anos antes, logo após ter chegado a Benguela, fugido da guerra que entretanto se instalara na zona do Cubal. Nunca antes tinha visto o mar, e o deslumbramento dessa descoberta, mantinha-se inalterado como no primeiro dia.
O Sol já se punha e esse era o seu momento preferido. Ver tanto azul, com um rasto vermelho de sangue até ao horizonte. Essa infinita quantidade de água, fazia-lhe lembrar as planícies imensas da sua terra natal , onde pastoreava o seu gado.
A vida não lhe tinha sido fácil. A falta de um braço, precisamente o direito, tinha condicionado toda a sua vida e tinha-o feito pastor. Tomava conta de todo o gado que havia na aldeia, ele, e outros como ele.
Aos 16 anos era um miúdo igual a todos os outros,com um futuro pela frente e mil anseios à espera de serem cumpridos. Um dia munido da sua zagaia e da sua catana, tinha ido caçar com outros miúdos, coisa que era habitual, mas esse dia marcou-o para sempre. Quando estava a emboscar-se, para atirar a uma cabra do mato, no preciso momento de retesar a corda do arco, inadvertidamente pisou uma surucucu, que em troca lhe mordeu a mão direita.
Longe do Cubal, e da sanzala, percebeu de imediato que tinha alguns minutos de vida. Rápidamente puxou da catana e cortou o braço, bem acima do cotovelo. Ainda teve forças para fazer um garrote e arrastar-se até à aldeia paterna. Aí como mandava a tradição, foi tratado pelo kimbanda, que recorreu a todos os pós, ervas e poderosas rezas. Mas como a tradição já não é o que era, ou porque o kimbanda era adepto das medicinas alternativas foi transportado ao Cubal, onde lhe administraram soro e antibióticos. Esteve longo tempo entre dois mundos, mas salvou-se. Jamais se saberá se foi a verdadeira medicina do kimbanda ou a medicina alternativa, que o salvou. Apesar de tudo, pagou um alto preço pela sua determinação e coragem.
Estava João, embrenhado nestes pensamentos, que lhe ocorriam frequentemente, quando viu a alguns metros um miúdo, com cerca de 12 anos, sem pernas, arrastando-se junto aos caixotes de lixo, disputando aos cães, os restos de comida que ninguém já queria. Era frequente vê-lo por ali, acompanhado de muitos outros miúdos menos estropiados, mas nesse dia, sem motivo aparente, decidiu chamá-lo e conversar um pouco com ele.
-Oh miúdo, anda cá.
-Como te chamas?

O miúdo lá veio, arrastando-se e disse:
- O meu nome é Samuel Jovete, e tu o que é que queres sékulo?
- Senta-te aqui só um bocadinho e conversa comigo.

João agora mais de perto, apercebeu-se que o miúdo, tinha um ar esquelético, barriga grande, cabelo desgrenhado, olhos encovados e envelhecidos e umas feições moldadas pelo pânico da necessidade de sobreviver. Nem um esboço de qualquer alegria.
- Onde estão os teus pais?
- Os meus pais, velho, morreram na guerra do Huambo. O resto da minha família, perdi-os quando fugiram. Eu fui trazido para Benguela pelos Médicos sem Fronteiras, para pôr umas proteses no lugar das pernas. Pisei numa mina quando tentava fugir. Mas, faz tempo já, me abandonaram aqui. Eu já não acredito. Ao principio, parecia um sonho, ía ter duas pernas novas, mas agora acabou. Não é fácil sonhar. Até já me alcunharam de meio-meio .
Aquele momento, sem que ele próprio o soubesse ainda, mudou a vida de João Simanco. Sempre tinha permanecido solteiro por opção própria, também quem é que iria querer um pastor, e ainda por cima incompleto? Jamais tinha conseguido juntar bens, que pudessem pagar um alambamento decente.
Sabia, por experiência própria, o que tinha sido a guerra do Huambo. O seu querido Cubal, também tinha passado pela mesma guerra fratricida. Irmãos matando irmãos, miúdos envolvidos naquele desatino quando deveriam estar a brincar, ausência de qualquer alegria, famílias destruidas para sempre e, para os que sobreviveram, pela frente perspectivas de nenhum futuro. Até Iemanjá, a grande deusa das águas se tinha desobrigado de qualquer intervenção apaziguadora, e constava-se que naquelas terras, até os rios tinham começado a correr ao contrário.
A angústia e o desespero daquele miúdo, tinham-lhe tocado bem fundo e decidiu de imediato, que talvez dois incompletos, um miúdo sem pernas e um velho sem um braço, pudessem juntar-se, e tentar viver uma vida melhor .
Além do mais João vivia na sanzala da família, e pelo menos comida ele podia oferecer ao miúdo. Há muito se tinha apercebido, da enorme catástrofe que se abatera sobre a sua terra, e da multidão de miúdos em idênticas condições, para quem o futuro nem sequer existia. E todos os dias se juntavam novos mutilados, a esta legião imensa. A juventude de Angola, andava literalmente e no melhor dos casos ao pé coxinho.
Ao menos tentaria que um deles tivesse comida, e calor humano. Era muito pouco, bem o sabia, mas pensava, que se todos fizessem o mesmo, talvez o futuro destes miúdos, não fosse tão negro.Além do mais, quem sabe o que poderia suceder?
- Olha Samuel, eu sou um velho maluco, mas estou como tu sózinho, neste mundo sem Deus. Vem viver comigo, que ao menos tens comida, e o futuro sabe-se lá.

Por um muito breve momento, os olhos de Samuel brilharam e contra tudo o que seria de esperar, provávelmente pela grande desesperança em que se encontrava, aceitou.
- Velho, moras longe? É que eu não posso andar longas distâncias, se é que se pode dizer andar.

João sorriu. O miúdo , era uma carga de ossos e mesmo com um braço podia carregá-lo fácilmente. E não estava assim tão velho.
- Vamos embora. Eu moro na sanzala junto ao Bairro da Peça, e posso nas calmas levar-te ao colo. Afinal tu és um meia dose, não pela falta das pernas, mas porque pareces uma pena.
Nessa noite, pela primeira vez, desde há muito tempo, Samuel teve uma refeição decente, quente, e dormiu numa esteira sua, dentro de uma cubata. Apesar de ser um sono inquieto, recortado como habitualmente, por imagens de horrores passados e presentes, sentia o calor de estar de novo, entre gente que o protegeria se fosse necessário.
Foi acordado pelos raios de sol, entrando pela cubata, e por um delicioso cheiro de café que entretanto o velho tinha feito.
Ainda estremunhado, viu entrar na cubata, uma mulher jovem.
- Miúdo, eu sou a Maria Saparalo . Sou sobrinha do velho João. Ele teve de saír e encarregou-me de tratar de ti, portanto ainda antes do mata-bicho, vou-te cortar o cabelo e dar-te banho. Assim pareces um bandido, daqueles muitos que andam por aí.
Dito e feito. Samuel, nem teve tempo de refilar. Viu-se com um pano à volta do pescoço, e a Maria de tesoura na mão. Findo o corte radical, foi de imediato metido numa selha e lavado. No fim teve direito a roupas limpas.
- Pronto, agora já pareces gente. Vais viver aqui connosco, tens pelo menos de não cheirar mal. Quando o velho vier, logo combinas com ele o que vais fazer.
- Maria, eu não vou fazer nada, como é que eu posso fazer alguma coisa? Sem as pernas, o que é que me resta para fazer?

- Miúdo, o teu pior defeito, não é a falta das pernas, é seres burro. Toda a gente pode fazer alguma coisa, tens é que te esforçar e pensar no que é que gostarias de fazer e de ser. Queres voltar para os caixotes do lixo? Achas que isso é vida, comer o que ninguém já quer, e ter ainda que dividir com os cães?

Após o mata-bicho, Samuel ficou durante muito tempo, ensimesmado, pensando na sua vida antiga, nos seus pais e irmãos, naquilo que poderia ter sido, pensando que o que ele sempre gostou de vir a ser era jogador de futebol. Mas, sem pernas? O que é que faz um miúdo sem pernas? Há jogadores assim?
O dia foi-se arrastando, Maria veio buscá-lo de novo para comer, e já à tardinha apareceu o velho.
- Então Samuel, como é que foi o teu dia?
- Deixaste-me aqui sózinho, veio aí uma maluca, que me cortou o cabelo rente, deu-me banho, xingou-me, e ainda perguntas como é que foi o meu dia?
- Samuel, a Maria é uma mulher dura, por tudo o que a vida lhe fez, mas dentro dela tem um coração de ouro. Verás isso quando a conheceres melhor. Seja como for, andei a tratar de planos para ti. Amanhã, começas na escola, tens que aprender as coisas, e depois logo se verá.
- Mas velho, como é que eu vou à escola, assim sem pernas?
- Na escola, não precisas das pernas. A gente pensa, é mesmo com a cabeça, e essa ainda não te cortaram, e a Maria já te disse, vai-te levar e trazer.
De facto Maria, lavadeira toda a vida, era também refugiada, oriunda do Longonjo . Na mesma guerra, em que o Samuel tinha perdido os pais, tinha ela perdido o marido, e tinha visto morrer um filho, vítima de uma explosão de napalm lançado por dois aviões, da qual só escapou milagrosamente.
Teria preferido morrer certamente, mas a morte tem destas coisas, ceifa indiscriminadamente. Mas, Maria Saparalo, não era mulher que se dobrasse a qualquer infortúnio, e acreditava que se a morte a tinha poupado, lá teria os seus desígnios. Por isso, seguiu em frente com uma coragem verdadeiramente exemplar. Vivia amancebada com um mecânico de automóveis, embora a situação actual tivesse feito dele um polivalente, mas nenhum deles tinha filhos. Talvez por essa razão, tomou conta de Samuel como se do seu filho se tratasse.
Decorridas duas semanas, já o menino, se apresentava muito melhor fisicamente, ía contrariado à escola mas ía e a sua cara de vez em quando, muito raramente já mostrava um esboço de sorriso.
Um entardecer, aparece João, com uma cadeira de rodas, enfim, mais ou menos. O companheiro da Maria, já vimos, era mecânico, e tinha arranjado no ferro-velho dois aros de bicicleta. A partir daí, com madeiras e a ajuda de um carpinteiro, tinham fabricado a dita cadeira de rodas. Sem pneus que isso já eram mordomias, mas para o Samuel, quando a viu pareceu-lhe um carro de luxo. E para completar, a Maria fabricou-lhe umas luvas de lona e pano, daquelas a que faltam os dedos, próprias para conduzir.

A partir desse momento, passou a ver-se o Samuel completamente independente. Corria Benguela inteira, tratando da sua vida. Ou da vida dos outros, pois era frequente pedirem-lhe para fazer recados. Era conhecido junto dos amigos, pela sua alcunha favorita: Ayrton Sena.
Numa dessas deambulações, e a troco de um qualquer serviço, arranjou um canivete, e foi como se um mundo novo se tivesse aberto.
Começou a brincar com pedaços de madeira que ía toscamente esculpindo, e com o tempo, começou a esculpir bonecos de artesanato, que se foram tornando progressivamente melhores. Arranjou outras ferramentas, e das suas mãos passaram a saír objectos, absolutamente maravilhosos.
Juntos, ele e o velho João, percorriam as ruas vendendo os objectos que ele ía fazendo. O dinheiro embora pouco, permitia-lhes terem algumas comodidades, a que nem sequer estavam habituados.
Ao mesmo tempo, a amizade entre estes dois ía crescendo, de tal modo, que o tempo que Samuel estava ausente ou porque estivesse na escola, ou porque estivesse na brincadeira com outros miúdos, se tornava penoso para o velho.
Um dia, já Samuel estava na 4ª classe, estavam a vender as suas estátuas, junto ao antigo Liceu na Praia Morena, quando foram abordados, por um branco que passava.
- Miúdo, quanto custam as tuas estátuas? És tu que as fazes?
- Sou eu chindere . Custam 10.000 kwanzas cada uma.
- Olha, são todas muito bonitas, mas eu não quero nenhuma. Aquilo de que eu ando à procura é de um elefante em pé sobre as patas traseiras. Se me fizeres um, eu compro-te.

Samuel, pensou que o pedido era bem estranho, onde já se viu um elefante em pé, mas já se tinha também habituado, aos estranhos costumes desses brancos estrangeiros, que tinham invadido a sua terra. Além do mais se lhe pagassem faria qualquer objecto.
- Está combinado. Dentro de três dias está pronto.
- Óptimo, que eu vou para Luanda para a semana, só estou aqui de férias.

Foram bastantes horas de trabalho. O pedido era dificil , e ele nunca tinha feito uma escultura daquelas, mas no dia aprazado, lá estava o estranho e lá estava o Samuel com o seu elefante.
- Olha, miúdo tenho pensado muito em ti. É raro ver alguém tão novo e com tamanha habilidade. É uma pena o que te aconteceu, mas vamos combinar o seguinte. Eu sou médico, e por acaso tenho alguma influência em Luanda. Não te prometo nada, mas pode ser que consiga alguma coisa. Vou levar a tua direcção. Quanto ao elefante é de facto muito bonito e ficarei com ele.

Samuel, não respondeu.
A vida tinha-lhe ensinado, que não era fácil sonhar, e já lhe tinham prometido umas pernas novas. Embora soubesse que o trabalho dos Médicos sem Fronteiras, era meritório, tinha consciência que era um entre muitos milhares de meninos nas mesmas condições, e deixara há muito de acreditar que a sorte poderia estar do seu lado. De qualquer modo, ficou agitado nesse dia e nos seguintes. Nada que o velho lhe fizesse o conseguia animar. Os próprios estudos se ressentiram disso, mas apesar de tudo conseguiu passar na 4ª classe. Vieram as férias grandes e pela primeira vez foi frequentar o Liceu. Não o velho Liceu da Praia Morena, tão cheio de tradições e memórias para quem o frequentou, mas para o liceu novo, lá para os lados do aeroporto.
Já o segundo período ía a meio. Um dia no regresso a casa, vê o velho que vinha esbaforido ao seu encontro.
--Samuel, chegou carta de Luanda. Tens que te apresentar dentro de quatro dias para ires para a Alemanha .O médico demorou, mas cumpriu.

Tudo aconteceu muito rápido. Samuel nem teve tempo de se aperceber do que estava a acontecer. Viu-se metido dentro de um avião militar, esteve três dias em Luanda e ei-lo a caminho da Alemanha, juntamente com outros miúdos mutilados como ele.
Passaram-se dois anos. O velho João definhava com a falta de notícias. Só de longe em longe ía sabendo por terceiros que Samuel estava vivo. Já tinha até perdido a esperança de o voltar a ver. Miúdo mal agradecido, pensava ele. Depois, de tudo o que fiz por ele, esqueceu-se de mim. É o mal desta juventude angolana. Não conhecem nada a não ser a guerra, os pais morreram e eles habituaram-se a viver sós e a depender de si mesmos. Provávelmente, não volta, também quem é que voltaria para um pobre pastor como eu?
Mas, a vida é isso mesmo, um baile de cicatrizes. Há que aguentar mais esta.
Um dia, ao entardecer, como habitualmente João estava sentado no seu banco favorito a ver as planícies imensas da sua terra natal.
Naquela altura em que o sol já é apenas morno, e se sente na pele como uma carícia, naquela altura em que o mar já só é vermelho, vê aproximar-se do lado do Porta-Aviões, um adulto jovem, alto, bem parecido, que chegou e se sentou a seu lado, sem dizer uma única palavra. Ficaram os dois longo tempo a ver o mar.
- Avô, já é noite. É tempo de regressarmos a casa.

NOTA: Samuel é hoje, um membro importante da Christien Children Fund, e bate-se árduamente por todos os miúdos daquele continente, que tiveram uma sorte semelhante à sua. Por sua iniciativa, muitos miúdos em diversos países, já foram restituidos a uma vida normal. O seu avô, acompanha-o para todo o lado, mostrando no rosto, o orgulho imenso do seu neto. Apesar da insistência de Samuel, nunca permitiu que lhe pusessem uma prótese.
Afinal, cumpriu o seu destino de pastor. Só que desta vez, de almas.
Quanto ao elefante, por obra do destino, está em meu poder, e é uma lindíssima peça de artesanato africano.
Todos os factos narrados nesta história, são quando tomados isoladamente, verdadeiros. A ficção aparece quando resolvi juntá-los. Apenas para dizer, que o sofrimento daquele povo, é meu também.
Henrique Faria
Coimbra, Outubro 2000

domingo, 29 de agosto de 2010

VENTOS

Convoco os grandes ventos de norte e sul
Na esperança de um grande mar
Em todos os tons de azul
Mar de muitas correntezas e velas
Asas brancas tingindo até ao infinito
Zarpar sem olhar para trás
Enquanto o sal não seca no corpo
E a pele ainda sabe a mar
Mirando a linha do horizonte
Até doerem os olhos, de muita luz.

GED

domingo, 8 de agosto de 2010

ELA

Hoje abensonhei rios
Todos os rios da minha vida
Mapa mundo hidrográfico
Saliente, correndo no corpo dela
Marcando montanhas e desfiladeiros
Veias
Rios na pele nua, macia
Voando velozes em turbilhão
Na correnteza, palavras e paixões
Cálidas, lentas, de bemquerer
Circulando cores e aromas
Em todos os tons de amorazul
Hoje abensonhei portas destrancadas
Entreavistei alucinações, delírios
O corpo nu há muito desejado
E janelas abertas no céu
Na madrugada de dias nascendo
Flutuam atois, ancorados
Na dádiva de um grande amor
Hoje abensonhei procuras incessantes
Envolvi cazumbis, tchinganges e feiticeiros
Ofereci tudo o que me resta a Kianda
Finalmente sei o seu nome verdadeiro
Vem Mahe
Porque eras tu
Porque era eu
Vem

GED

sexta-feira, 30 de julho de 2010

ALDA LARA


A segunda excepção, para um poema que não é meu. Da grande poetisa angolana.

as longas mãos, cobertas de silêncios
e de esperas
acariciam agora, outras mãos,
mais pequenas e mais belas…
e desse contacto tão distante,
que ainda é saudade,
e é já promessa,
nasce a íntima certeza
de que o sangue do meu corpo
corre para o teu,
como uma herança…

estão presas as minhas mãos,
às tuas mãos, criança!
e sobre a ponte frágil
dos nossos dedos confundidos
como cadeias de hera,
se ergue dia a dia
a esperança desta dor
e desta espera…

Alda Lara

quinta-feira, 29 de julho de 2010

INDIA

Índia, sangue tupi
Bela, incrivelmente bela
Corpo esguio dançando na areia
Princesa de olhos negros
Caminhando na berma da tarde
Coração batendo
No comando de todos os tambores
Veias circulando lavas ancestrais
Alma vestindo todos os tons de azul
Sorriso de atear incêndios e aquecer invernias
Cruzeiro do Sul
De navegadores perdidos
Rio de correntezas selvagens
Na coragem de quem ousar

GED

VEM!

Vem
Mostra-me o caminho
Desse tecido de que fazes os sonhos
Onde os poemas não têm razão de ser
Não preciso de fotografar
Apenas sentir, tocar sem pudor
Vem
Dá-me a mão
Ensina-me a geografia dos teus céus
Borda-me os poemas que farei
Sem rumos, nem desvios, nem distâncias
Entra. Chega mais perto
Vem até à beira
Vem!

GED

sexta-feira, 23 de julho de 2010

ANJO

Oiço um anjo respirar no meu ombro
Num sussurro de mil sóis vagabundos
Adivinho-lhe as asas brancas
Fechando-se suavemente em mim
Um rio de águas mornas aquece palavras
Próximo, uma fogueira espreguiça-se
Ardem sem pressa afectos invisíveis
Num rasto sem fim de promessas
Que um dia serão cumpridas
Oiço um anjo respirar no meu ombro
E aquieto-me numa espera serena.

GED

segunda-feira, 19 de julho de 2010

TONS DE AZUL

Vivem nas bermas do mundo
Nos longes do outro
Ela tem oceanos na cabeça
Fantasmas vagueando por lá
Nas areias douradas
Ele percorre os grandes desertos
De ventos e silêncios
Ela dança ao som de mil girassóis
Com o seu vestido de cetim azul
Desenhando sensualidades
De tangos e boleros ecoando na tarde
Ele aquieta-se na calmaria do crepúsculo
Afundando-se com o sol no horizonte
Vidas desaguando em azuis diferentes
Mas adormecem nos sonhos de cada um

GED

quarta-feira, 23 de junho de 2010

MÃOS

É de mãos que eu falo
Dedilhando cuidadosamente os sons
De corpos e almas
De mãos serenas, traçando contornos
Para além do vazio e da solidão
Criando ilhas em oceanos violetas
De mãos firmes desventrando amores
Apontando firmemente os caminhos futuros
De mãos entrelaçando outras mãos
Em gestos de ternura incontida.
De mãos incapazes de rasgar cartas
Concavas, segurando a areia dos penhascos
Voando exuberantes sobre as ondas
De mãos feiticeiras tecendo sem fim
Penélopes traçando os seus próprios rumos
De mãos acariciando serenas, o dorso dos rios
Desvendando labirintos e enseadas
Até que finalmente tudo seja mar
É de mãos que eu falo.

GED

terça-feira, 15 de junho de 2010

TERRA

Terra
Cais seguro no fim da viagem
De atracar barcos e vidas
Abraço ancorado de fim de dia
Cais sem paredes nem amarrações
Luzindo mil sóis vagabundos
Terra
Minha casa, meu lugar seguro
Com cheiros de rosmaninho
E girassóis dançando ao luar
Oceanos juntando outros sussurros
Nas pressas de viver e voar
Terra
Rios azuis asilando lussengues e bagres
Gente entrelaçando almas
Colocando pedras nos alicerces do mundo
Meninos boiando na superfície da vida
Mil línguas, todas iguais
Terra
Cetins azuis e verdes flutuando
Livremente nos ventos tão diferentes
Catuites e zonguinhas e seripipis
Chilreando alegrias e alucinações
Rios escorrendo águas e destinos
Terra
Meu derradeiro porto de abrigo

GED
Coimbra, Junho de 2010

quarta-feira, 26 de maio de 2010

ELA E ELE

Rasgam-se fendas no tecido do tempo
Cidades flutuantes brilham no escuro
No incessanto balanço dos mares e marés
As noites afundam-se no horizonte
Vapores liquidos estremecem o ar quente
Ela, bailarina ensaia passos de dança
Daqueles que já não se usam mais
Vestido de cetim azul pairando no ar
Os olhos dele enchem-se de pirilampos
Brilhando desejos de querer ousar
Sorriem-se
Em ondas de espuma e ventos mansos
E ela, e ele
São rios de muito encanto e alucinações
Descendo montanhas abruptas e planícies
Até serem apenas foz.

GED

sábado, 17 de outubro de 2009

MÚSICA

A música rodeia-nos
Tudo o que temos de fazer
É saber ouvi-la
Sons de Bach flutuam no silêncio
Do outro lado da vidraça
Há ritmo e cor e música
Basta saber ouvi-la
Nos carros que passam
No coaxar de rãs
No andar felino de um gato
No som das estrelas
Basta saber ouvi-la
No ritmo diário dos girassóis
Na dança dos canaviais
No silêncio dos imbondeiros
Tudo o que temos de fazer
É saber ouvi-la
No mosquito que nos atordoa
Nas crianças rindo à nossa volta
No batuque, longe na noite
No transpirar ofegante das nuvens
Desfazendo-se em líquidos
Basta saber ouvi-la
No respirar de gente dormindo
No incessante ondular dos rios
Nos acordes de um violão
Algures, rompendo silêncios nocturnos
Na dança silenciosa dos amantes
Basta saber ouvi-la.

GED

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O TAMANHO DAS ESTRELAS

De que tamanho são as estrelas
Que flutuam no azul profundo?
Muitas, a maior parte, são pequeninas
Retenho-as no concavo da mão
Outras, poucas, são imensas
Apenas me cabem na alma
Memórias de ternura e acalanto
Acompanham o meu caminho
Algumas não as vejo para lá do horizonte
Estão lá, pressinto-as
Brilhando em céus antigos
Ensaiando rumos meridiões
Aquecem-me o coração, aceleram o meu pulsar
Todas, todas, me cabem na íris
O tamanho varia cá dentro.

GED

quinta-feira, 23 de julho de 2009

PARA A SARA

ANDORINHAS

Embriago-me
No som das andorinhas tecendo voos
Velozes, alucinados
Sob o sol, no azul do céu
Rumo a sul
Aos beirais da minha casa.
Embalo-me nestes Setembros
De asas negras
Raios de luz riscando a noite
E o grande mar oceano
Na pressa de chegar.

Coimbra, Julho de 2007
GED

quarta-feira, 20 de maio de 2009

NOITES

Escorrem-me noites
Por entre os dedos das minhas mãos
Consigo reter algumas estrelas solitárias
Luz para os meus passos
Um de cada vez, por entre silêncios
Marcando areias ainda quentes
Cadência pausada, feliz
No rumo do dia que amanhece.

GED

quinta-feira, 19 de março de 2009

SEM MARGENS

Poema sem margens
Transbordando alucinações
Pirilampos indecisos
Boiando na noite
Silêncio das pedras ainda quentes
Vapores, flutuando madrugadas.
Lágrimas de chuva
Na pele nua
Olhos azuis brilhando desejos
Em cada estrela do céu
Ritmo frenético do louvadeus
Sismando passos firmes
Encharco-me de tardes
Malmequeres só de bem querer
Rios deslizando bagres
De cor púrpura
Virgens parindo ternuras
Pairam no ar borboletas azuis
Chão estremecido de calores
Loucos cultivando sonhos
Olhares distantes da demência
Raios de luar
Cravados no chão adiante
Crianças felizes abraçando confortos
Sem margens

GED

quinta-feira, 5 de março de 2009

HAIKAI II ( PARA O MANUEL )

Um raio de sol
Luzia no concavo das mãos
Ventos diferentes.

GED

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

MUKANDA

MUKANDA

Embaciados, ardem-me os olhos
De tanto que já viram
Ainda me servem os sapatos
Com que reinvento o chão
Um dia deixarei de dançar
As danças há muito aprendidas
Mas não hoje
Atrevo-me em novos passos
No eterno baile da vida
O meu rumo é sempre sul
O primeiro chão que pisei
Onde estão os meus imbondeiros
Areias douradas e o mar azul
Desembrulho os meus sonhos
Neste tempo longo de esperar
Revejo tantos quartos vazios
Na casa da minha vida
Um dia deixarei de dançar
Em cima da linha do horizonte
Mas não hoje
Tempo de kissanges e batuques
De saltar e levantar poeira
Arrastar amigos nesta vertigem
Aprender mais uma vez a viver
Sem anunciar preconceitos
Apenas a minha caixa de madeira
Cheia apenas de desejos e coragem
Um dia deixarei de dançar
Esta eterna valsa entre continentes
Mas não hoje

GED

domingo, 7 de setembro de 2008

ASAS

Irremediavelmente, elevo-me em voos
Como qualquer ave, aliás
Cresceram-me asas durante a noite
Definitivamente
Renego o destino da pedra
Permanentemente presa ao chão
Ausência de sonhos de ver mais longe
Voo acima das cordilheiras
Sem pressas, planando no calor
Desafio sapos e salamandras
Rastejando vidas inquietas, limitadas
Distancio-me
Viajo para onde o mar encontra a terra
Se conseguir tocar no horizonte
Estarei perto do fim da minha viagem

GED

quarta-feira, 23 de julho de 2008

OUTRAS AVES

Há palavras que são aves
Febrilmente abandonam o papel
Renegam o chão que as pariu
Voam velozes nas alturas
Parindo sonhos e novas palavras
Descansam muito raramente
No concavo das mãos
De guerreiros e sonhadores
O tempo apenas da partilha

GED

OUTROS VOOS

Corpos de geometrias variáveis
Sobem nos côncavos do vento
Planando em círculos de calor
Setas velozes mirando a presa
Pequenos ajustes no movimento
Voar é como um verso de amor
Solitário condor no azul sideral
Atento do alto à funda rodando
No arremesso da palavra certa
Planar na superfície dos poemas
Aproveitar-lhes a energia vital
Flutuar feliz no calor das rimas
Acima de todas as cordilheiras

GED

segunda-feira, 14 de julho de 2008

A CAIXA DE MADEIRA

Diante da minha árvore da febre
Abro a velha caixa de madeira
A minha velha caixa de alucinações
Ouço passos seguros, cadenciados
Soltam-se os murmúrios das fontes
Águas de engrossar rios e mares
Dançam nos ventos tão diferentes
Palavras suaves de escrever e contar
Cetins verdes recobrem as margens
Voam poemas de vestir e sonhar
Máscaras escondem rostos de mulher
Moi-se massambala na casa do meio
Contam-se rios de muita água passada
Imaginam-se outros que hão-de chegar
Certos que na foz todos são de ir e voltar
Grandes manadas empoeiram o sol
Meninos homens na circunsição esperada
Os mais velhos matam os bois sagrados
Mulheres de fitas brancas nos cabelos
Velhos gaviões flutuam no ar quente
Girassóis amarelos ensaiam valsas lentas
No horizonte o chão estremece de calor
O grande vermelho entra no rio maior
Polvilhando de faúlhas os céus negros
Hora de dragões sobrevoarem as fogueiras
Libertam-se os lobos de todas as memórias
Sonhos de boiar na superfície da vida
Embrulham-se cambriquitos e juras de amor
No ritmo dos batuques há muito ensaiados
Até que os corpos se diluam na madrugada.

GED

domingo, 22 de junho de 2008

ANIVERSÁRIO ( DO MANUEL)

 Para trás ficaram as poeiras das picadas.
Caminhos do mato tantas vezes percorridos antes, e depois em sonhos.
Muitas mulheres bonitas.
Tardes calorentas na praia Morena, vigiados pelo Sombreiro.
Biúlas fumadas às escondidas.
Mordem os nossos calcanhares os “lobos da memória”.
Que bom saber que a vida dos amigos se alonga serenamente.
Não sei o que tens pela frente, mas desejo-te e, faço minhas as palavras do Luandino:
- Vivi. Engrossei o rio de lágrimas que me pariu. Depois lutei contra a corrente. Pelejei com as margens.
Agora cheguei à foz. Com os meus companheiros, os fiéis da vida. Diante de nós o mar. No porenquanto entro o mar com eles.
Até onde?

GED

POETAS

De um vislumbre fugaz
Tecem-se os fios de um sonho
De um barco desamparando o cais
Fiam histórias de amor e maldições
Sem cuidar da exacta medida das frases
As palavras duramente paridas
Buscam o mais fundo de nós
Se apenas cantarem
Sem quadras, rimas ou sonetos.
Quando a esperança cavalga o desespero
E há nuvens cinzentas
Nas cordilheiras à nossa frente
Quando alguém está encurralado
Dentro de si mesmo
Na pior das emboscadas
É preciso
É necessário
Que as palavras apenas cantem
Sem quadras, rimas ou sonetos

GED

CHICO

Soltam-se danças no peito
Percorro o mundo redondo da música
E voo à solta pelos sonhos
De mão dada com velhos amigos.
Magia de tudo ser possível
Embarcar em qualquer viagem
Poder estar louco por momentos
Soltar-me na melhor malandragem
Amar serenamente sem culpas.
Mas,
Quando me quero encontrar
Olhar para dentro e reconhecer-me
Atravesso sozinho o grande mar
Ao encontro de um velho amigo.
E, falamos conversas longas
Da vida e morte da Severina
Das meninas dele e das minhas
As mesmas ideias, as mesmas lutas
Percursos paralelos, a mesma sina
Construimos países imaginários
Relembramos os nossos heróis
Guerreamos contra as injustiças
Derrubamos ditadores sanguinários.
Escreveu-me quando estava em festa
Estivemos de verdade, mas já não
Pena que esteja tão longe
Que não saiba quanto é meu irmão
Há um mar tão grande entre nós
Mas há tanto mar a juntar-nos.

GED

quinta-feira, 12 de junho de 2008

MEU IRMÃO

De madrugada
A noite ainda cintilava de estrelas
Destacou-se do bando
E voou
Um voo alto, definitivo, sem retorno
Para lá das últimas cordilheiras
E
Acendeu uma candeia no teto do céu.
Mais uma
Junto a tantas outras
Derramando luz nos nossos caminhos
Recordando quem somos.
Ausência
Tantas ausências
Estalam no meu peito
E
A alma quase verga
Na saudade roendo em cada dia.
Sonho que voa serenamente noutros bandos
Aproveitando os ventos de feição
Esperando por nós.
Um dia, juntos de novo
Voaremos sem pressas
No acolhedor azul infinito.
Um dia…

A VIDA AFINAL É…

Danças lentas, nas espirais de fumo
A pele respira aromas há muito esquecidos
Estremeço na vertigem de imagens passadas
No concavo da noite, finalmente decido
Sigo em frente, palmilhando o meu futuro.
Na certeza de que no momento derradeiro
Quero apenas sorrir com a alma lavada

REFLEXOS

Como sempre uma dança lenta,
Olhando-se no fundo dos olhos rasos de água.
Reflectiram-se, como só dois apaixonados sabem fazer.
E o dia foi amanhecendo...

VERÃO ANTIGO

Junho queima nos corpos
As brasas que ficaram de outros calores.
A pele respira ofegante, rápida
Ainda tremendo com as lembranças
De cacimbos antigos.

FOGO

Não sei porquê...de repente pus-me a pensar
Em borboletas...azuis, claro.
Jamais se aproximam do fogo com medo de queimar as asas.
Não sei porquê...de repente pus-me a pensar!

A PALAVRA

Gotas de chuva escorrem na vidraça embaciada
Ouvem-se murmúrios na casa da poesia
Apenas murmúrios, quase impossível tecer a palavra
Certeira, definitiva, redonda, afiada
Quando nasce, vem do fundo mais fundo
E cresce, até me sentir esgotado
Basta acariciá-la e lançá-la no espaço
Vai voar, um voo perfeito, profundo
E pousar serena
No poema finalmente acabado.

CLASSE É..

Classe é ter nascido no mato
E ser um principe no meio da multidão.
É cortejar uma mulher
E ela não se sentir ofendida.
Classe é tocar na Vénus de Milo
E sentir um arrepio na pele.
É tratar um pobre
Como se fosse milionário.
Classe é estar numa taberna
Como se está no Marriot em Nova Iorque.
É poder falar com os outros
E ouvir o que têm para dizer.
Classe é passear pela cultura
Como se deambulasse numa praia deserta.
E poder curar todas as feridas
Sem se preocupar com as cicatrizes que ficam.
Classe é enfrentar os bravios mares da vida
Sabendo que o barco não se vai afundar
É conseguir aguentar a nossa posição
Ainda que isso nos custe a vida.
Classe é ter sido de esquerda
E continuar a sê-lo, apesar de tudo.
É conseguir guardar todos os amigos
No lado esquerdo do peito.
Classe é sentir-se cidadão do mundo
Sem esquecer de onde se vem.
É ler um poema de Neruda
E chorar sem qualquer vergonha.
Classe é poder enfrentar o fim que vem
Com a certeza de ter sido feliz.

terça-feira, 20 de maio de 2008

TERRA

Tons de azul dançando com nuvens
Solidão de viajante no infinito negro
Minha casa, planeta riscado de luar
Amornando no sol de todos os dias
Continentes brilhando ao anoitecer
Rios espreguiçando-se à flor da pele
Vagueando no desejo de serem mar
Rugas estilhaçadas roçando os céus
Grandes oceanos fermentando vidas
Danças lentas, marcando os ritmos
Das noites suaves, dos dias verticais
Dos amanhãs flutuando nas brumas
Minha casa, planeta de impossíveis
Equador vincando norte e meridiões
Dividindo alucinações e maravilhas
Imbondeiros, cravados nas planícies
Gaviões imóveis em busca da presa
Pastores conduzindo gado e solidões
Brisas ondulando a quietude da tarde
Minha casa, planeta de muitas vozes
Semeada com sussurros tão desiguais
De guerreiros desafiando os destinos
E poetas tecendo as malhas do futuro
Outras mundos estão na palma da mão
Brilhando na coragem de quem ousar

EQUADOR

Há um equador em cada um de nós
Rigores geográficos de norte e sul
Rotas migratórias marcadas no céu
Rosa dos ventos de um destino a sós
Ansiedade de voos no infinito azul
Até ao lugar que o coração escolheu.

Viagem solitária com rumos certos
Sem azimutes compassos ou cartas
Apenas o instinto de saber navegar
Pelos céus, tempestuosos ou abertos
Rasgar noite e dia com asas fartas
Até pressentir que aquele é o lugar

Chegar, como quem chega de viagem
Reconhecendo em cada pedra a casa
Onde tantas vezes quisemos chegar
E, era sempre sonho, sempre miragem
Ficar imóvel, tempo de fechar a asa
Abrir o peito ao sol, sorrir devagar

HAIKAI

 Dormem os lobos
Há um tchingange dançando
Ao som de girassóis.

À SOMBRA DA MULEMBA

Diante de mim
Uma estrada sem fim, rasga a planície
Asfalto negro, tremendo em alucinações escaldantes
Percorro-a sem parar
Até ver o dia escorrer lentamente, noite adentro.
Ao longe, uma fogueira cintilante
Debaixo de uma mulemba solitária
Chego tremendo de frio e sento-me.
Em redor, homens e mulheres conversando baixinho
Vieram de todas as partes
Ouviram falar desta fogueira mítica
Onde nascem histórias e canções e amizades
Relembram-se tchinganges, maravilhas e aparições
E os rios impetuosos e imbondeiros altivos
De repente, já não sinto frio
As estrelas brilham mais
A fogueira agiganta-se em milhões de faúlhas
Que sobem e se transformam em mais estrelas
Desapareceu o cansaço.
Aconchego-me, ponho o cambriquito nos ombros
E deixo-me levar finalmente
Pelos verdadeiros caminhos da minha vida.

PORMENORES

A vida é feita de luz
No risco vermelho no horizonte
Diluindo o dia na noite que vem
Ou naquela pétala azul
Entre todas as outras brancas
A vida é feita de luz
Viajando pelo lado esquerdo da vida
Neste momento de abandono
Subir a pulso o Kilimanjaro
Únicamente para ver nascer o sol
A vida é feita de luz
Ao olhar a selva africana
E ver apenas o colibri beijando flores
E olhar para um homem
E conseguir ver o menino que lá mora
A vida é feita de luz
Quando escutamos aquela música banal
E dela retemos pequenos acordes maravilhosos

Deus existe nos pormenores

DANÇA LENTA

Esse dia acordou
Com uma estranha poeira no ar
Senti-a ainda embriagado de noite
Ensaiei uma dança lenta de acordar
Estremecendo paludismos interiores.
O campo de batalha da minha vida
Ainda não está... cicatrizado.
Sabia o que me esperava.
Relampagos lavrando a pele da terra
Escorrendo vermelha de lava
Pelos carreiros de chuva furiosa.
Depois, o sol escaldante no rosto
A solidão das planícies sem fim
Eu caminhando na berma da tarde
Um imbondeiro debaixo do braço.
Quis fugir desta agonia habitual
Desta alucinação que me consome
Mas permaneci quieto e vertical.
Pirilampos esvoaçaram em redor
Pousou um beija-flor no meu ombro
Lentamente foi-se atenuando a dor
Desta cicatriz que teima em abrir
Latejando quando menos espero
Vergando-me os alinhavos da alma.
Há tantos dias que acordam
Com uma estranha poeira no ar.
O campo de batalha da minha vida
Jamais...estará cicatrizado.

domingo, 27 de abril de 2008

NOITES

Deito-me bem fundo na noite
Flutuando em acolhedores silêncios
Desadormeço, sismando
Viagens em velhos mares interiores.
Em montanhas, planuras, ravinas
Buscando
Um momento perfeito do tempo
Existindo em qualquer lugar
Que ainda não vislumbrei.
Visitam-me assombrações
E maravilhas
Revejo-me em desassossego
Em lugares por onde nunca andei.
Há tantos amigos que deixei atrás
E outros tantos que ainda não encontrei.
Com eles fui feliz muitas vezes
Em infâncias deste meu futuro.
Roubo tempo à noite
Buscando as diferenças que não fiz
Ansiando entender o que me trouxe aqui
Tão longe de rumos anunciados.
Busco incessantemente
O momento perfeito do tempo.
E rompo a noite até ser dia
Com memórias de olheiras fundas
Sabendo que haverá outras noites
E que o meu momento perfeito do tempo
Há-de aparecer.

TALHADOR DE SONHOS

Palmilhei todos os cantos do mundo
Caminhei com outras gentes
Errei como qualquer vagabundo
Encontrei mil pessoas diferentes.
Num lugar muito longe daqui
Conheci um homem misterioso
Dizia-se, talhador de sonhos
De quaisquer sonhos e, a pedido
Talhava também fantasias e alucinações
Há anos que o povo chegava sem cessar
Na esperança de um, ainda que pequenino
E ele talhava, talhava sempre
Espantado por não terem sonhos seus
Homens grandes que nunca foram meninos.
Noutro lugar distante conheci uma mulher
Era escultora, mas bem diferente
Esculpia sem parar, mas eram almas.
Fazia-as de todas as formas e feitios
Habitualmente saíam bonitas, perfeitas
De vez em quando, algumas com defeito
Para valorizar ainda mais as outras.
Muito mais tarde, conheci um homem
De ar normal, um pouco distraído apenas
Vivia para proteger espécies em extinção
Tinha um zoológico com jaulas e jardins
Onde tratava carinhosamente de todos
Chamou-me a atenção algumas jaulas seguidas.
Numa um casal de alegrias, noutra uma viola
Mais à frente o Kilimanjaro e um bandolim
Mas o que de melhor se tinha conseguido
Estava no espaço principal do zoo
Um casal de sonhos, tinha finalmente
Dado à luz em cativeiro, um par de gémeos.
Pela primeira vez havia a esperança real
De salvar a espécie humana em perigo.

NOSTALGIA

Caminhando pela tarde...
Um imbondeiro debaixo do braço.
Estiro o olhar pelos longes
E... vejo um pássaro azul
Planando no ar.

LUZ II

Não há nenhum lado escuro
No sorriso de uma criança
Não há nenhum lado escuro
Para quem ainda tem esperança
Não há nenhum lado escuro
Quando o céu continua azul
Não há nenhum lado escuro
Nas gentes que vieram do sul
Não há nenhum lado escuro
Na alegria de gente feita de luz
Não há nenhum lado escuro
Sempre que alguém nos seduz
Não há nenhum lado escuro
Em crer que o outro é meu irmão
Não há nenhum lado escuro
No claro e eterno jogo da sedução
Não há nenhum lado escuro
Mesmo na face de miudos com fome
Não há nenhum lado escuro
Se a solidariedade tiver esse nome
Não há nenhum lado escuro
Se te colocarem estrelas na fronte
Não há nenhum lado escuro
Se conseguirmos atravessar a ponte
Não há nenhum lado escuro
Num guerrilheiro que mata
Não há nenhum lado escuro
Quando o faz pela ideia exacta
Não há nenhum lado escuro
Enquanto houver uma dádiva tua
Apenas há um lado escuro
Na face que está oculta, da lua

TANTO MAR

No teu olhar
Habitam oceanos azuis
Promessas e bençãos
Flutuam
Até ao horizonte
Sobra tanto mar
Nos azuis profundos
Do teu olhar
Tanto mar navegado
Ainda tanto para percorrer
Caminhos nunca pisados
Nos lagos azuis
Do teu olhar.

PASTOR

Eu invento palavras e lugares
Deslizo pelas imagens e pela cor
Pelos caminhos penosos e do amor
Decido toda a sorte e os azares

Vejo em cada estrela uma esperança
Enfureço o mar e acalmo os ventos
Antevejo bonanças e tormentos
Rejubilo-me com cada mudança

Os meus amigos dizem que sou poeta
Com uma amizade sem tamanho
Sou só um pobre pastor sem rebanho
Tentando libertar do arco a minha seta

IMBONDEIRO

Raízes cravadas bem no fundo
Dos abençoados solos africanos
Quando desaparecermos do mundo
Estarão ainda por mais mil anos

Serenos e pacientes, já lá estavam
Na chegada da primeira nau marinheira
Invencíveis e imponentes lá ficaram
Quando desapareceu uma raça inteira

Sobranceiros continuam a observar
As tragédias e alegrias de um povo
Que apenas queria poder chegar
Às fundas raízes de um tempo novo

Erguem os braços aos céus, vigorosos
No silêncio fazem ouvir a sua voz
E nós continuamos todos, silenciosos
Aguardando um destino belo, ou atroz

Pendem ratos dos seus braços esguios
Enormes, tão assustadores à luz do luar
A carne é branca, como a neve dos frios
Agridoce, para quem os consegue apanhar

Donos de todas as minhas emoções
Sempre foram bons companheiros
São árvores de angolanas tradições
São altivos, e chamam-se imbondeiros.

NAVEGADOR DOS SONHOS

NAVEGADOR DOS SONHOS
( De um texto em prosa, que foi escrito com alma de poeta )
Para o seu verdadeiro dono, o meu amigo Manel.



Há muitos bateis de nostalgia
Fundeados nas margens do Tejo
Frequentemente acostam-se a nós
Partir ou ficar torna-se uma agonia

Vem devagar esta melancolia
É estranho este desconsolo
Em vez de nos trazer tristeza
Traz-nos uma imensa alegria

Se alguém lhes solta as velas
Levam-nos em sonhos perdidos
Pelos sulcos doridos do mar
Até às nossas praias mais belas

Na bagagem apenas a certeza
Que a viagem vale sempre a pena
É uma viagem às nossas raízes
Na África Ocidental Portuguesa

Podemos visitar postos militares
Sem guarnições nem canhões
Ou mergulhar na praia Morena
Apenas na memória desses lugares

É uma viagem sempre sem volta
Tantas, tantas vezes navegada
Os caminhos marcados na alma
E os sonhos a correrem à solta.

sábado, 19 de abril de 2008

ALUCINAÇÕES

Que bom caminhar solitário pela berma da tarde
Com um imbondeiro debaixo do braço

E lançar serenamente, ao cair da noite
Raízes fundas com o companheiro de jornada

E, contemplar a noite de mil estrelas
Como se fosse apenas a primeira vez...

E adormecer no instante absolutamente preciso
Em que a noite empalidece.

GED

LUZ (para a Filipa)

Soube dela pela primeira vez
No cimo do Empire State
Vem aí uma menina
Muito pequenina
Nova Iorque brilhou mais
O primeiro olhar
Uma ferida a doer
Um passo, outro passo
Começou a andar
E a crescer
Refugia-se no meu colo
Um olhar que seduz
Meiga
Cúmplice
Tão pequenina
Irradia tanta luz
Ilumina os meus caminhos.

GED

POETA ?

Pastores de palavras
Tecelões de ideias
Tecendo lentamente estas teias
Semeando como se fossem lavras
São assim os poetas do meu país
De todos os países
E eu?

GED

LUSOSINFONIA

O grande mar oceano
Divide pátrias lusitanas
Caminhos longos das vagas
Exilando pastores e poetas.
Mas, nos verdes cavalos do vento
Cavalgam sussurros e vozes
Fazendo ruir as muralhas
Construindo histórias comuns
Pátrias da mesma língua.
Nenhum oceano é tão grande
Que separe a história.
Afinal vivem juntos
Pastores e poetas.

GED

JORNADA PARA A ALVORADA

Caminho solitário
Pela margem dos sonhos.
Imóvel no ar
Junto a mim
Voa um pequenino beija-flor.
E mais longe
Um falcão sobrevoa a planície.
Atrás de nós anoitece.
Caminhamos
Em direcção à alvorada.
Cai uma chuva miúda
Que me escorre pela face.
Existimos os três
Juntos no mesmo corpo.
Guerreiros e sonhadores.

GED

quinta-feira, 17 de abril de 2008

MUNDO NEGRO

Vivem desvairados
Na periferia do mundo
No lado negro da vida.
Encarcerados
Entre o não ser e o ódio.
Incapazes de um sorriso
Ou
De um sonho rutilante.
Inventam
Balas fundidas na própria alma
Que despejam em lagos de fogo.
Atiçam
Fogos imensos, cruéis.
E
Incapazes de os controlar
Ardem neles silenciosamente.
Vivem
No meio de nós
Disfarçados e atentos
Ateando males medonhos
Libertando todas as pestes
Todas as lepras do mundo.
Não podemos vencê-los.
Não podemos convencê-los.
Nem
Um sorriso de criança
Seria suficiente.
Apenas podemos desejar
Que a Força possa vir a estar
Com eles.

GED

RUMO AO DESCONHECIDO

Partiam, sem conhecer os ventos
Carregando todas as esperanças e medos
Meses a fio cavalgando a espuma
Enfrentando Adamastores e tormentos
A força a fugir-lhes por entre os dedos
O escorbuto ceifando vidas, uma a uma.

Foram demais, os que a morte ceifou
Preço alto para este país tão pobre
Com mil anseios de outras paragens.
Vidas demasiadas que o oceano tragou
Para que o Cabo das Tormentas se dobre
Na busca de novos sonhos e miragens

Naus catrinetas viajando no azul
Gajeiros vasculhando o risco do mar
Buscando Áfricas, Brasis, Orientes
Partiram , para o norte e para o sul
Com nenhuma certeza de poder voltar
Navegaram buscando novas gentes.

Mas pouco a pouco foram chegando
Poucos, quase nenhuns, mas chegaram
Carregando a fé e o império nos ombros
Que por especiarias foram trocando
Com as naus carregadas regressaram
A contar muitas histórias de assombros.

E voltaram a ir de novo, e regressaram
Agora na miragem da terra prometida
A alma carregada de toda a esperança
E voltaram a ir de novo, e lá ficaram
Lançaram padrões, ancoras de vida
Espalharam por lá a lusitana herança.

Velhos colonos, lutando no denso calor
Criando o nosso império dito colonial
Plantando e colhendo a dádiva do chão
Construindo as nossas raízes com amor
Inventando um país genuinamente real
Onde viver, fosse mais que uma ilusão

Eram muito orgulhosos os nossos pais
Sonharam o sonho julgado impossível
Mas no fim, o país sonhado estava lá
Sofreram por entre matas e canaviais
Erguendo a pulso, o nosso país incrível
Traves aqui, carris ali, fábricas acolá

O vento da história correu ao avesso
Caíu o império que julgavam infindo
Meteram-se nas naus e regressaram
Deixando atrás um nevoeiro espesso
Podia ter sido um sonho muito lindo
Já sonhado nas barcas que arribaram.

GED

ESPERANÇA

 
Sinto-me bem
Mesmo quando cavalgo tempestades
Ainda que medonhas.
Sinto-me bem
Há gente feita de luz
No meu caminho.
Sinto-me bem
Ainda que no dorso
Escuro do medo.
Quando adiante não há nada
Mas há gente feita de luz.
Sinto-me bem
Na garupa do pavor
No meio da maior dor
Porque no meio do nevoeiro
Há gente feita de luz.
Sinto-me bem
A roçar o pescoço do desespero
Quando já nada parece possível
Quando o futuro não está lá
Porque há gente feita de luz.
Sinto-me bem
Quando monto nas tristezas
E levo as amarguras pela rédea
Sinto-me bem
Porque há-de haver sempre
Gente feita de luz.

AVE

Os fios da minha vida
Alguém os puxa por mim.
Mas os sonhos...
Ah, esses são só meus.
Cristalinos, livres,
Esvoaçam ao sabor
Das tempestades.
Quando um sonho nasce
Nada o detém.
Liberta-se,
Ganha forma, cor
Voa pelos céus
Rindo-se
De quem puxa
Os fios da minha vida.

GED

VOO DO SONHO

Pouso docemente uma palavra
No dorso branco do papel.
Por momentos fica quieta
Depois lentamente agita-se.
Uma borboleta tremendo as asas
Preparando-se para o voo.
Levanta decidida e
Toma um rumo próprio.
Chama as companheiras e lá vão.
Já não dependem de mim
Mas carregam os meus sonhos.

GED

segunda-feira, 31 de março de 2008

ELA

ELA

Os seus gestos são todos meus
Conheço-os de cor, inventei-os
No instante do encontro primeiro
É o meu rio sem margens
Transbordando em fúrias incontidas
Ou correndo sereno no leito da vida
Girassóis presos no cabelo
Olhando como só ela sabe acariciar
Pressentindo-me as ausências
Aquieta as águas de navegar
Luta comigo no mar revolto
E deita-se tranquila a meu lado
Sonhando os meus sonhos meridiões

GED

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

TEMBREABREZI

Depois de ultrapassar a escuridão
E de cruzar o grande oceano
Lá, onde a longa onda se quebra na praia
E onde o sol amanhece as planícies douradas
Aí fica o lugar a que posso chamar casa.

GED

SAUDADE

Que dor violenta é esta no meu peito
Que faz o meu pobre coração cavalgar
Pelas aldeias e cidades do meu país ?
Que dor tão forte é esta ?

GED

A MORTE DO POETA

Enquanto o meu corpo se agitava
Uma mulher solitária dançava
Nua
Um brilho intenso no seu olhar
Escorria pelo cabelo, ao bailar,
A lua
Olheiras cavando fundo o rosto
Rugas de um enorme desgosto
Só seu
Nesta noite ninguém dorme
A voz do nosso mestre, enorme
Morreu
Os versos não mais explodirão
Ficou a funda, inerte, na mão
Quieta
Já ninguém os poderá lançar mais
Com a energia e a certeza vitais
Do poeta.

GED

A GRANDE VIAGEM ( Nos anos do meu amigo Manuel )

Há pouco tempo, foi justamente ontem
Um grande, muito grande amigo meu
Embarcou, largou as amarras e partiu
Para a segunda parte da grande viagem
Não foi ele que decidiu, apenas cresceu
Mas partiu mais rico, com tudo o que já viu

Na despedida celebrada, estiveram os amigos
E o meu amigo Manuel, chorou
Mantém ainda essa rara capacidade de amar
Connosco sentiu que desapareciam os perigos
E com uma alegria renascida, zarpou
Aproveitando o vento de feição, para navegar

A primeira parte da viagem foi dura
Com períodos de acalmia e temporais medonhos
Lutou e pelejou como qualquer marinheiro faz
Enfrentou ventos, marés e a noite escura
O meu desejo maior é que encontre os sonhos
E que seja uma grande viagem em paz.


Um grande abraço.

Coimbra, 22 de Janeiro de 2001

UM DIA...

Algum dia, algures no meu futuro
Vou colocar um bouquet de flores
Flutuando nas águas do nosso rio.
É garantido que o colocarei, juro
Vermelhas, azuis, de todas as cores
Vê-las-ei afastar-se, terei um arrepio.

Recordarei todos os peixes que pesquei
Todos os jacarés repousando nas águas
Todas as aventuras em que me envolvi.
Recordarei os amigos com quem andei
Todas as mulheres, sem qualquer mágoa
Recordarei toda a vida que então vivi.

Depois, calmamente regresso ao Cubal
Não acreditando ainda, que voltei.
Cruzam-se comigo, fantasmas do passado
Cada esquina, cada casa, cada quintal
Murmuram tantas histórias que já contei
Ainda assim, permaneço sereno, calado

À minha volta, há um silêncio quente
E o sol desce lentamente, vermelho
Espalhando sombras nos imbondeiros
A saudade invade-me, sempre crescente
E sinto-me agora terrivelmente velho
Só, sem nenhum dos meus companheiros

Ficarei algum tempo, ainda
Olhando em redor, vendo o tempo recuar
Adiando a inevitável despedida.
Um último olhar à minha terra linda.
Finalmente, voltarei as costas, devagar.
Rumo ao que resta da minha vida.

Um dia
Vou colocar um bouquet de flores.

GED


sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

EU

Eu,
Em todos os caminhos por onde andei
Em todos os lugares que vi ou sonhei
Na busca dos meus pedaços dispersos
Apenas encontrei fragmentos de versos
Dos poemas lindos da minha infãncia
Desfeitos nas saudades e na distância.
Eu,
Olho e vejo-me agora tão incompleto
Tão incapaz de sentir qualquer afecto
Por uma terra que nunca será a minha
Por uma lua que me parece tão sozinha
Por um poema que não me diz nada
Sou um vagabundo no meio da estrada
Eu,
Caminho solitário, na berma do mundo
Buscando e rebuscando bem no fundo
As forças que necessito para continuar
Energia vital suficiente para equilibrar
O meu pendulo sideral tão desalinhado
A minha vida que teima passar ao lado
Eu,
Alinhavo penosamente o ritmo dos dias
Somo uma a uma, muitas horas vadias
Numa matemática alucinante e sem fim
Conto cada dia que não conta para mim
Espero paciente os sopros do vento sul
Trazendo cheiros do meu mar tão azul
Eu,
Aguardo pacientemente um tempo novo.

GED

PÁTRIA MINHA

Naquela fracção de segundo
Naquele preciso momento
O rio da História tocou em mim
Envolveu-me num sentimento
De que só podia ter sido assim
Naquela fracção de segundo
Naquele preciso momento
Forças siderais se conjugaram
Estrelas brilharam no firmamento
Rota segura das naus que chegaram
Naquela fracção de segundo
Naquele preciso momento
Séculos antes de eu me conhecer
Os deuses criaram um encantamento
Daquilo que não era mas viria a ser
Naquela fracção de segundo
Naquele preciso momento
Na foz do grande rio tropical
Colocaram o padrão do achamento
Ficou séculos ali como um sinal
Naquela fracção de segundo
Naquele preciso momento
O grande Cão olhou o céu sem fim
E viu claramente escrito no vento
Criara uma pátria só para mim.

GED

O MEU BARCO

Trago o meu barco
Dentro do meu próprio peito
Raramente ancorado no cais familiar
Quase sempre sulcando viagens
De sonhos interiores que não viajei.

GED

DRAGÕES

Dragões dançando na luz das velas, a dança anunciada.
Sem espaço para solidões ou desesperos.
No calor das fogueiras queimam-se histórias de tempos antigos.
Pela frente, ainda tantas histórias para contar!

GED

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

REGRESSO

De novo o chão que me pariu
Pulsando debaixo dos meus pés
Uma vida e um mar de tempo
Latejando a mesma dor
Muitas vidas depois
A noite incendiando-se
Em Cruzeiros há muito conhecidos
Faúlhas na noite de breu
Apontando os rumos do sul
Silêncios enormes e espessos
Nas anharas até ao horizonte
Cada passo enterrando-se
Violentamente no solo
Vontades interiores de criar raízes
O olhar brilhando
Os tons de dias felizes
Alma lisa, preguiçando mansamente
Na sombra de mulembas e imbondeiros
Fundo-me nos basaltos negros
Que dançam lentamente na paisagem
E olho em redor
Cacimbos arrepiando a pele
Pastores comandando gado
Mulheres batucando andares
Meninos tecendo teias de futuros
Fogueiras nocturnas
Queimando histórias antigas
Um bouquet de flores
Nas águas cintilantes do meu rio
Flutuaram até ao horizonte
Navegando promessas cumpridas.
Tantas vidas depois
Retornei a este chão
Que reconhece cada passo meu
Seguro, renegando solidões
Terra minha, finalmente em paz
Voltarei sempre
Até um dia...

GED


LÁGRIMA DE PRETA

Uma lágrima rolou lentamente
Pela face daquela mulher de cor
Um rasto líquido vincando rugas.
Libertou-se no espaço
E, explodiu violentamente no chão
Em mil cristais de dor.
Cada cristal, uma lembrança
Uma agonia de esticar a alma
Ameaçando estilhaços.
Um filho morto de cada vez
Chorando todos um por um.
O desejo da morte que não vem
Caminha só, sem destino algum
Por esta pátria doida, alucinada
Cruzando-se com outras lágrimas
Engrossando o mar que nos pariu
Ondas vermelhas prenhas de sangue
Rugindo numa calema tresloucada.
Tréguas temporárias, muito poucas
Só quando o sono liberta os sonhos.
Repousa e incendeia-se serena
Pelo seu mundo de antigamente
Desfeito todos os dias
No instante em que acorda.

GED

VAMOS...

VAMOS...


Um dia ela disse-me
Vamos
Não perguntei para onde
Pedi-lhe apenas que colhesse flores
E as levasse
Seguimos estrada fora
De mãos dadas
Sem nada que nos pertencesse.
Apenas as flores
E um futuro para construir.

GED

TUDO MUDA

( Sobre um poema de Mercedes de Sosa )

Tudo muda
Há cegos que conseguem ver
Há quem fique cego, com boa visão
Há pessoas presas nas ruas
Vive gente livre na prisão
Tudo muda
A brisa da tarde pode ser furacão
O lobo pode tornar-se cordeiro
Até o dia se muda para a noite
O homem de paz vira guerreiro
Tudo muda
O menino torna-se homem
A lua nem sempre é igual
Há espingardas com flores
O tiro nem sempre é fatal.
Tudo muda
Os amigos nem sempre o são
A vida desfaz-se na morte
Podemos estar sós no meio da multidão
No meio do azar há por vezes sorte
Tudo muda
Só não há-de mudar nunca
O amor à minha pátria doce e quente
Hei-de permanecer imutávelmente fiel
À minha terra e à minha gente.



domingo, 13 de janeiro de 2008

PLANETA AZUL

Palavras gravadas no coração da pedra
Pulsam no tempo primitivo dos druídas
Runas tão antigas, mágicas, poderosas
Rasgões na pele envelhecida da terra
Ameaçando vidas, todos os dias perdidas
No horizonte, mortes espreitam silenciosas.

São runas de salvação e de vida, dizem
Deveríamos saber interpretar os sinais
Vísiveis no corpo magoado do planeta
Uma árvore caída, um odor na aragem
Uma espécie desaparecida, talvez mais
Nos rios e lagos, a água escorre violeta

Feridas em carne viva no coração do mundo
Chagas purulentas, dolorosas, ameaçadoras
Fumos densos, desalinhando o pêndulo sideral
A caminhada longa para o abismo profundo
Visões permanentemente loucas e redutoras
Homens e animais consumindo-se neste mal.

Ninguém surge para decifrar as antigas runas
O planeta esgotando-se em ruínas fumegantes
A morte espalhando o seu manto tão sombrio
O mar enraivecido galgando as grandes dunas
Ventos em turbilhões ciclónicos, arrepiantes
E finalmente um planeta mudo, vazio, frio.

Gavião

RIOS

Correm-me rios nas veias

Muitos lhes conheci já na foz

Rios gordos desabando no grande mar

Outros encontrei nos caminhos

Rios de sim e não

Rios suficientes

Vadiando águas em festa

Nunca conheci pequeninos

Não perguntei

Vi rios amigando com outros rios

Rebolando nas pedras

Engravidando margens

Conheci rios de ser feliz

Deixei-me levar

Rios com cais

Atracando barcos e vidas

Rios doces, cheirosos

Tresandando a rosmaninho

Rios de memórias

Correndo ao contrário

Rios de permanecer

Acabei por ficar



GED

ALMA DE MAR

A minha alma é feita de mar

Desaguando todos os rios

De águas nunca passadas.

É feita de grandes sóis vermelhos

Mergulhando no mar oceano

De pumumos e catuites

E zonguinhas zunindo no ar

Bicos de lacre e siripipis

De milho e massambala

E do chão vermelho

Destilando perfumes alucinados

De massarocas e dendém

De tchinganges levantando poeira

De trovoadas e relâmpagos imensos

E de chuva bravia explodindo na terra

De matrindindes e lagartos de fogo

De bichinhos solidamente vermelhos

Anunciando o fim de cada aguaceiro

De praias sem fim

E ondas traçando alinhavos na areia

De goiabas e mangas e fruta pinha

Derretendo sabores irrrepetíveis

De cubatas e sambos de gado

Amanhecendo em cacimbos serenos

De matas densas, silenciosas

Onde nos perdemos e encontramos

De imbondeiros solitários

Que sempre me acompanham

Do churrasco de galinha do mato

E bolas de pirão comidas à mão

Escorrendo óleo de palma nos lábios

De rios, de todos os rios

Mesmo os que correm na memória

De iniciações e namoros únicos

Do primeiro beijo às escondidas

De maboques e missangas coloridas

Das argolas enroladas nas pernas

Batucando todos os andares

Marcando ritmos de encanto e vida

De comboios mala furando a noite

Transportando mercadorias e sonhos

A minha alma vagueia nas saudades

Na minha alma vive um país.



GED

A MINHA TERRA

Já fiz muitos poemas à minha terra. Neste blog, a esmagadora maioria dos poemas são originais, escritos pelos respectivos autores que têm a fidalguia de os publicar aqui. Por isso, o poema que vou partilhar com vocês, e que constitui uma excepção às regras que impus, não foi escrito por mim nem por nenhum de vós.
Apenas gostaria de o ter escrito. Foi-me enviado por um grande amigo e, tocou-me bem fundo.

Quando te disse
que era da terra selvagem
do vento azul
e das praias morenas...
do arco-iris das mil cores
do sol com fruta madura
e das madrugadas serenas...

das cubatas e musseques
das palmeiras com dendém
das picadas com poeira
da mandioca e fuba também...

das mangas e fruta pinha
do vermelho do café
dos maboques e tamarindos
dos cocos, do ai u'é...

das praças no chão estendidas
com missangas de mil cores
os panos do Congo e os kimonos
os aromas, os odores...

dos chinelos no chão quente
do andar descontraido
da cerveja ao fim de tarde
com o sol adormecido...

dos merenges e do batuque
dos muquixes e dos mupungos
ds imbondeiros e das gajajas
da macanha e dos maiungos.

da cana doce e do mamão
da papaia e do cajú...

tu sorriste e sussurraste
'Sou da mesma terra que tu!'

Ana Paula Lavado
in ' Um beijo sem nome' do livro 'Vozes ao Vento'

CIO DA TERRA

Toda a noite

Escorreu chuva pelas paredes do céu

Ainda há lágrimas na vidraça

Lá fora

Levanta-se um vapor denso

Cio da terra

Rios tropeçando nas margens

Navegando lamas e canaviais

Pressa de chegar

Anúncio de tempo novo

Preparos de lavrar e semear

Abundâncias adiadas

Agora é hora de filhos novos e borboletas

De pastores comboiando gados

Circuncisões e puberdades

Agora, mesmo agora

Mulheres jovens da casa do meio

Silêncios cúmplices na noite

Fogueiras de aquecer e conversar

Agora

Tempo de kissangua e hidromel

Batuques ritmando vidas

Entrelaçam-se olhares límpidos

Segredam-se juras e alembamentos

Sacrifício do mais sagrado animal

Hora de deuses e kiandas

Agora

É tempo de respirar


GED


CRUZEIRO DO SUL

O sol dissolve-se lentamente no risco distante
Sentado na areia quente, alongo o olhar
Para a lonjura diante de mim
A noite violeta estende-se mansamente
Já se vê Orion e o olho vermelho de Marte
E a Estrela Polar brilhando intensamente
Procuro o Cruzeiro do Sul em vão
Companheiro de farras e insónias
Não está lá, só nos meus sonhos
Olho de novo para o meu coração
Com a certeza de que os céus da minha pátria
Continuam a existir
Penso em Copérnico
E em como o odeio por ter razão
A terra é redonda
E o meu céu, não o consigo ver
Mas sei que existe
Para lá do horizonte

GED

BAILES DA VIDA

MILTON NASCIMENTO (meu companheiro de todos os bailes da vida )

Muito recentemente
Estive com um velho amigo
Companheiro sempre presente
Em todos os bailes da vida
Voz mensageira de um país
Afagando ternamente a raíz
Das cores e sons antigos
Ah! Canta Brasil
Canta pela voz telúrica
Do teu grande viajante
Desperta
O caçador que há em mim
Continua a ensinar-me
Que há momentos assim
Para viver e morrer de amor
Leva-me contigo
A salvar todas as amazonias
Todos os deserdados do mundo
Mas no fim de tudo
Quando já nada mais restar
Quando a alvorada chegar
Deixa-me ficar calmamente
A ouvir-te.

GED

SARA

Hoje, pela primeira vez vi a Sara.
Vi-a no momento exacto, em que pôs a cabeça de fora.
Alguns segundos depois, fez-se anunciar berrando a plenos pulmões.
Aconteça o que acontecer, fui o primeiro a dar-lhe a benção. Não estava sózinho, no entanto. Os meus pais e o meu irmão estavam lá.
Só por isso, sinto-me muito feliz.
Depois, porque sei que a família dela é vastíssima, fiquei descansado.
Tocaram os tambores e toda a tribo já sabe que tem mais um membro para cuidar.
Pode vir a mudar os destinos do mundo.
No porenquanto, piscou-me o olho, sem o pai ver. Fiquei a saber que é do Benfica.
É, nasceu a minha neta.
Um abraço

CONSTRUÇÃO

Um dia vou construir um tempo

Sereno, indestrutível, transparente

Sem distâncias nem oceanos

Tempo de saciar todos os amores

Sem tempo.

Rios grávidos e feiticeiras

Brilhando nos luares

Arrastando remorsos e solidões

Tempo de alinhavos de fim de tarde

Um dia vou construir um tempo

Todos os rios serão foz

Flutuando lentamente alucinações

E maravilhas

Cheiro permanente de rosmaninho

Palavras exactas, da casa do meio

Carregando poemas nunca escritos.

Mar adentro em velas marinheiras


Um dia vou construir um tempo

Sereno, indestrutível, transparente

PALAVRAS SOLTAS

De vez em quando
Nascem
palavras soltas, transparentes
Inventam asas nas altas nuvens
Desabando depois em fragor liquido
Na terra poeirenta e vermelha
Ou, pousam mansamente
No risco vermelho do horizonte.
Pulsando sempre no ritmo africano
Que comanda o meu andar
Consigo ver de novo
A dança dos girassóis
Brincando com a luz
Rios gordos marcando rumos
Mulheres feiticeiras ensaiando o passo
Incendiando almas
Dragões esvoaçam nas fogueiras
Queimando histórias
De vez em quando

Nascem palavras soltas
Teimosamente rumam a sul

UM DIA...

Muitas vezes dou comigo a pensar
Que há um tempo certo de morrer
Um dia a cidade vai estar vazia
O meu bando voou para lá das cordilheiras
Sobram fantasmas de amores e desamores
A minha vista cansada
Já não atinge as montanhas distantes
As cabaças de kissangua estarão secas
Os girassóis na planície já não dançarão
Rios velhos sulcam-me a face
Terei de caminhar sózinho
Muitas vezes dou comigo a pensar
Que há um tempo errado de viver.

REDUTO FINAL

Dispo-me
De todas as impurezas
Até só restar

Um punho fechado no peito.
Um pequeno pássaro azul.
Pelo caminho deixei
Almas desatentas
Invejas alucinadas
Problemas supérfluos.
Abandonei encruzilhadas
Reneguei amarguras

E outras solidões.
Sou finalmente GED.

VIDA

Hoje vim para dançar a noite inteira
Abrir todas as portas que há no chão
Vim para derramar a alegria contida
Engravidar a vida à minha maneira
Apenas tango dançado na contramão
O tambor do peito ritmando a batida

Lagos azuis, incendiando os oceanos
Saia de cetim, anunciando promessas
À volta meninos de rua, dançam no ar
O ar, tem cheiros de sabores profanos
Dois namorados olham-se sem pressas
Descemos a avenida, num raio de luar.

ÀS VEZES...

Às vezes dentro de nós faz Sul
Vezes demais
Sempre
Rigor geográfico da alma
Ponto cardeal fixando amarras
Mar Atlântico sentido daqui
Calemas de Marços idos
Poeira da infância, ainda por assentar
Cruzeiro sempre pressentido
Nestes céus ocidentais
Vozes de poetas
Inventando rãs e silêncios
Dançam girassóis na planície
Imbondeiros cobrem-se de neves
Acerto o meu relógio
Nos meninos que brincam a sul
Cheiro casuarinas e acácias
Bicos de lacre e zonguinhas
Aterram no meu peito, desordenadamente
Saro vezes sem conta
Esta ferida doída, latejante
É
Às vezes dentro de nós faz sul.
Sempre

FÉRIAS

Deslizo veloz neste silêncio
Apenas o sussurro da neve, na passagem
Pensamentos ausentes
A fixação na próxima curva
A inclinação e o balanço precisos
No risco sempre calculado
Em volta
Incendeiam-se cumes
Que apenas pressinto
Aqueço e aumento o ritmo
Inutilmente
Uma princesa pequenina
Voa no limite do meu olhar
Tranquila, certeira, harmoniosa.
Sei que vai esperar por mim
Com um riso traquinas
E um chocolate quente.

DE ONDE EU VENHO

De onde eu venho
Não há dunas de areia
Águas soltas no céu
Pingando gengibre e doce mel
Rios, sim.

De onde eu venho
Estremecem paludismos
Fogueiras devoram as noites
Desejos por saciar
Estalam ruidosamente os ossos do tempo

De onde eu venho
Há cabaças de kissangua e hidromel
Virgens parindo ternuras
Sede da terra
Rios velhos, sim.

De onde eu venho
Planam girassóis ao vento
Gestos de vidro e luz de mil cores
Amores alucinados
Carne viva.

De onde eu venho
Há imbondeiros preguiçando ao sol
Sombras voam na floresta
Faúlhas dançam no escuro
Rios novos, sim.

De onde eu venho
Há mulheres dilacerando os milhos
Borboletas azuis
Ritmos da memória antiga
Rios pedregosos, sim.

De onde eu venho
Jovens ensaiam juras de amor
Luares derramados nas copas
Serpentes prateadas, nevoeiro
Rios serenos, sim


De onde eu venho
Há meninos rindo, na casa do meio
Nuvens brancas, girassóis
Corpos sedentos, febris
Rios mágicos, sim


De onde eu venho
Kissanges e batuques perfumam a noite
Fogueiras e pirilampos
Palavras apenas sussurradas
Rios sem margens, sim

De onde eu venho
Acendem-se candeias ao jantar
Despem-se silêncios desiguais
Águas gordas, grávidas
Rios primevos, sim.

PERTURBAÇÕES

A morte é redonda
Igualitária
Desonesta…

Desonestamente igualitária

SEM RETORNO

Ardem-me nas veias
Silêncios magoados
Corroem-me rios de lava
Por gestos que não cumpri.
Embacio os olhos
Sem retorno

CARLOS PAREDES

Por breves instantes
Calaram-se as guitarras do meu país.
Nunca mais os acordes dissonantes
Ouvidos na pessoa primeira.
Vejo-o solitário
Libertando os sons
Presos nas cordas da guitarra
Aos ombros transportava um sonho
Maior que ele, maior que todos nós
Cerzir, cerzir sem parar
Os alinhavos da alma portuguesa
Em Junho chegou-me a notícia
Não mais, tinha regressado aos pós
Não acreditei, não acredito.
Só morre quem merece
E
Se olharem com atenção, verão
Continua vagueando por aí
Cuidando da alma de todos nós.

NOITE VERTICAL

Cai chuva na noite
Rios oblíquos na vidraça
No arrasto do vento
Estendo um prumo, tocando o horizonte
Que a noite tem que ser vertical
Roçando o dia que vem.

FERA

O dia amanhecia tímido
Farrapos translúcidos na neblina
As aves, ainda ausentes de voos
Aquietavam-se nos ramos húmidos.
Um homem espreguiçava sonhos
Lentamente acordou nas tarefas matinais.
Assomou à porta
À orla da floresta.

TERRA MINHA

Um dia perguntei-lhe
Sabes onde é?
Sabes como é o Cubal?
Não me respondeu, mas
Pegou numa folha de papel
E desenhou.
A verde, uns rabiscos de sisal
Com um lápis preto traçou o rio
Juro que vi os jacarés ao sol
E meninos tremendo de frio
Com o mesmo lápis traçou ao lado
Uma enorme serpente de ferro
Perdendo-se lá longe na mata
Dissolvida num cacimbo nublado.
Com todas as cores que arranjou
Desenhou o casario
E as acácias em flor.
A castanho fez uma estrada para norte
E um pouco à frente, a azul
Desenhou um pontinho
A medo, perguntei um pouco à sorte
Isso parece-me a lagoa.
Claro que é, não há lagoas a sul.
Voltou atrás e desenhou outra estrada
E, um pouco à frente
Numa curva desenhou umas “alminhas”
E logo depois
Fez uma casa que parecia abandonada
Nas árvores em redor, pôs levemente
Muitos bicos de lacre e zonguinhas
A toda a volta do desenho continuou
A rabiscar verde de vários tons
Disse-me
São as matas da tua infância
Onde tantas vezes te perdeste e
Encontraste.
Não me ia esquecer, sabes como sou.
Não vês os catuites e as rolas?
E aquela cabra de leque pastando?
Espera, ainda falta qualquer coisa
E desenhou a azul muito escuro
Nuvens densas e uma chuva bravia
Desculpa, mas não consigo desenhar
O cheiro doce que a terra trazia.
Esse, vais ter que ser tu a imaginar.
Como é possível, ver esse Cubal
Sem nunca lá teres estado?
Enganas-te
Toda a vida vivi rodeada de sisal
Conheci cada palmo nas tuas histórias
Sei de todos, todos os teus amigos
E todos eles vivem como tu
Enredados nas mesmas memórias.

PRECISO

Preciso
De deixar para trás
Os girassóis que ardem
Na planície
E
Escalar
Este Everest dentro de mim
Olhar os sóis
Para lá do horizonte
Perder-me
No mar de estrelas
Navegar nos anseios
Perdidos.
Preciso
De atravessar as cordilheiras
E render-me
Às alturas abruptas
E ver
Os rios despenharem-se
Lá em baixo
Com os meus sonhos
De vidas anteriores
Preciso
De chegar ao cimo e,
Morrer de amor
E renascer.

MEMÓRIAS

Nunca dormem os lobos da memória.
Ouço-lhes os passos
Pisando levemente o chão.
Espreito
Sabendo-me já prisioneiro.

COMANDANTE

Ausente
Para sempre
Presente
Estrela cintilante
Raio de luz
Camarada
Comandante
Companheiro
Flor do Caribe
Condor
Do altiplano boliviano
Timoneiro
Guia
Leão africano
Orgulho da nossa geração
Poeta
Guerrilheiro
Irmão
A vida inteira
Alegria
Sofrimento
Caminheiro
De caminhos certos
Pegada
Miragem

Dos grandes desertos
Solidão
Tristeza
Dor
Uma lágrima no chão
Ausente
Para sempre
Presente
Eternamente
Che

ALMA (sobre um tema recorrente, do meu amigo Manuel!)

Bateis de nostalgia
Fundeados
Ancorados
No fundo mais profundo
De nós
Carregando
Fantasias e alucinações
Sulcam
Doridos mares interiores

POEMA DE AMOR

Um dia
Há muito tempo
Ela fixou o olhar em mim
Iris azul do oceano profundo
Soltaram-se colibris, e um aroma de jasmim
Falcões rasaram as ondas
As nuvens pingaram cristais
Brilharam estrelas na noite
Milhões delas, ou talvez mais
Dissolvi-me lentamente naquele olhar
As buganvílias explodiram em flor
Um grou solitário riscou o céu
Alguém fez uma declaração de amor
Houve crianças que sorriram
Um guerrilheiro enganou a morte
Os rios galgaram as margens
Um fraco tornou-se forte
Os rios correram ao contrário
Os alicerces do mundo tremeram
O pendulo sideral oscilou
E os furacões amansaram
Soltei o ar que retinha no peito
Estremeci de puro prazer
Enfeiticei-me pela dona do olhar
Caminhei decidido para o entardecer.

SOL DE ÁFRICA

Como um ferro em brasa
Vermelho, incandescente
Dissolvendo-se vezes sem conta
No horizonte
Marcou-me para sempre a alma.
Ferida sempre doída
Nas sombras das casuarinas
E
No aroma das frutas.
Desespero ansiando
Pelo início das chuvas
E pelo cheiro da terra
Chaga aberta
Pela lembrança dos caminhos do mato
E da savana junto ao mar
Ferida sem alívio
O silêncio, em vez
Do rugido do leão
E os rios pedregosos
Sem jacarés.
A cicatriz que não vem
O desejo de abraçar imbondeiros
E de que os cacimbos
Me arrepiem a pele
Até chorar de dor.
Ferida dormente
Doendo a cada instante
Nas manhãs de bruma
E nos crepúsculos de sangue
Terra minha, onde estás
?

IMBONDEIRO

Raízes cravadas bem no fundo
Dos abençoados solos africanos
Ao desaparecermos do mundo
Estarão ainda por mais mil anos

Serenos e pacientes, já lá estavam
Na chegada da primeira nau marinheira
Invencíveis e imponentes lá ficaram
Quando desapareceu uma raça inteira

Sobranceiros continuam a observar
As tragédias e alegrias de um povo
Que apenas queria poder chegar
Às fundas raízes de um tempo novo

Erguem os braços aos céus, vigorosos
No silêncio fazem ouvir a sua voz
E nós continuamos todos, silenciosos
Aguardando um destino belo, ou atroz

Pendem ratos dos seus braços esguios
Enormes, tão assustadores à luz do luar
A carne é branca, como a neve dos frios
Agridoce, para quem os consegue apanhar

Donos de todas as minhas emoções
Sempre foram bons companheiros
São árvores de angolanas tradições
São altivos, chamam-se imbondeiros.

O MEU PAÍS

Dentro da minha cabeça
Tenho uma caixa de lápis de cor
Com que pinto os sonhos.
Neste
Pego no lápis castanho escuro
E pinto duas muanhas altivas
Que passavam perto de mim.
Dou-lhes mais um pequeno toque
Para que se veja o andar
Que só as gentes do sul têm
E que nós tão bem conhecemos
E para podermos ouvir
Os chocalhos amarrados na canela.
Peguei nos verdes, ah os verdes
E tive que usar todos os tons
Para pintar as matas densas
Passei levemente por cima
O lápis cinzento
Como esquecer-me dos cacimbos
Que tantas vezes me arrepiaram a pele?
Lá ao longe dois morros de basalto
Cortam o horizonte da savana
Pinto-os com o lápis preto.
Com o lápis amarelo dourado
Pinto a imensa anhara
Onde tantas vezes me perdi
E me encontrei.
No meu sonho tinha chovido
Uma chuva bravia, poderosa
Desenhando alinhavos no pano da tarde
E cheirava intensamente
Aquele cheiro da terra depois da chuva
Não o pintei, não consegui
Afinal
De que cor se pinta o cio da terra?
Com o lápis vermelho
Pintei o sol enorme de fim de tarde
E vi no mar
Aquele imenso rasto de sangue
Por fim, com o lápis azul
Sempre o lápis azul
Coloquei no canto direito
A minha assinatura
Esperando, ansiando
Que gostem deste sonho.
Não o vendo, apenas o ofereço
Afinal,
Que preço pode ter o meu país?

OXALÁ

Oxalá
Fosse possível voar
Os sonhos fossem reais
A vida corresse devagar
A sorte sorrisse demais
Oxalá
A morte fosse só uma ideia
A dor só viesse depois
O corte não fosse na veia
Eu e tu não fossemos dois
Oxalá
Os rios nascessem no mar
Amigos não tivessem partido
As noites brilhassem ao luar
O coração nunca tivesse doído
Oxalá
A faca só tivesse um gume
O tiro não ferisse ninguém
As montanhas fossem só cume
A meta não ficasse tão além
Oxalá
Todas as manhãs fossem serenas
O pôr do sol fosse sempre lilás
Não houvesse ideias pequenas
Oxalá

CHUVAS DE SETEMBRO

Chuvas de Setembro
Aviso de todos os calores
Rompendo céus negros
Grávidos de tanto liquido
Esmagam-se ruidosamente
Na pele engelhada da terra
E partem à desfilada doida
Arrastando tudo na corrente
Chuvas de Setembro
Relançando todos os milagres
Já julgados impossíveis
Cada gota trazendo sementes
De novas vidas prometidas
Alinhando o pendulo sideral
Com os passados e presentes
Chuvas de Setembro
Rápidas e fugazes
Dissolvendo-se de repente
No desmedido calor tropical
A certeza do diário regresso
Violentas, gordas, destruidoras
Reconstruindo a energia vital

EU SOU

Eu sou
O caminhante solitário
No meio da multidão
As cicatrizes da vida
E o bater do coração
Eu sou
Os rios que correm
E os desertos do mundo
O caminho das estrelas
O desejo que vem do fundo
Eu sou
Os olhos de todos os cegos
Mesmo dos que podem ver
O sabor doce do azedo
E o amargo do prazer
Eu sou
O pirilampo no escuro
E o barulho do trovão
A seiva das árvores
E o rugido do leão
Eu sou
O guerrilheiro que mata
A suave brisa do entardecer
O cheiro acre do medo
O aroma do capim a arder
Eu sou
Tudo o que quiser ser
Abel, Caim, Germano
Injusto, bom, assassino
Apenas um ser humano.

DEFINITIVAMENTE

 Não,
Não me sinto
Meio-meio.
Não.
Não quero morar
Nessa encruzilhada.
E não posso chamar
Casa a esse lugar.
De alma velada
Olho para dentro de mim
Percorro o meu labirinto
E vejo,
Anharas, matas, savanas
e, um rio sem fim.
Explosões de cor
Ritmos, batuques,
Lindas mulheres africanas.
E vejo
Amigos, paixões, amor,
Saudade, Cubal,
Acácias rubras, morros.
E vejo,
Relâmpagos riscando o céu.
Chuva imensa, a jorros.
Cubal, Cubal, Cubal, meu
Não,
Não me sinto.
Sinto dentro uma dor
Funda, persistente,
Um lobo feroz, guerreiro,
De mim, caçador.
Inutilmente.
Lamento mas não,
Não me sinto
Meio-meio.
Sinto-me africano.
Inteiro.

TRÊS SEGUNDOS

TRÊS SEGUNDOS
(Este poema dura em média cerca de 45 segundos a ler).


Em cada três segundos morre um menino
Evaporam-se em fome, doença ou solidões
Neste preciso instante já morreram três
Para estes jamais poderá haver soluções.

Os dedos da mão estalam em ritmos loucos
Um morto, outro desiste, outro vai embora
Alucinados vagueiam na global indiferença
De um drama, que em cada dia não melhora

Dia mundial, da fome, da criança, do amor
Da paz e de múltiplas outras solidariedades
Já se exilaram sem retorno, mais outros três
Destroços inúteis na casa azul da liberdade

Ausência, medo, pavor, peso de vergar almas
Nunca, nunca mais, outros três lindos sorrisos
Os meus olhos rasam-se em oceanos de dor
Por tantos, tantos meninos vivendo indecisos

As manhãs do nosso futuro, desistem na noite
Outras três voaram para além das cordilheiras
Eram cientistas, ou carpinteiros, ou bailarinas,
Seriam adultos, vivendo as suas vidas inteiras.

Nunca mais será possível adormecer em paz
Sabendo que o tempo rola na escuridão fria
Mais três que partiram nos ventos diferentes
Fugiram e levaram com eles a nossa alegria

Corre por este rio de alucinações e maravilhas
Esta ausência, do pedaço de pão para todos nós
Desertaram mais três, esgotados de esperas vãs
Sinto-me, sentimo-nos todos, cada vez mais sós.

DRAGÕES

Dragões dançando na luz das velas, a dança anunciada.
Sem espaço para solidões ou desesperos.
No calor das fogueiras queimam-se histórias de tempos antigos.
Pela frente, ainda tantas histórias para contar!

E SE ?...

E se alguém, de repente
Um dia, pudesse parar o tempo?
Se por instantes morresse a eternidade?
Se fosse possível ver a bala que se aproxima
Ou a lágrima que não cai, no rosto de uma criança
Um relâmpago congelado no céu
Uma catástrofe no último segundo
Um girassol tremendo de frio
Um milhafre incrustado no azul infinito
Uma mãe sorrindo para o filho
Isso mudaria alguma coisa cá dentro?
O nosso lobo ensaiaria recuos?
Se fosse possível parar uma valsa lenta
Ou ver um gesto de amor, fixado no tempo
Uma pedra aguardando um voo veloz
Um poema inacabado
Um corredor atingindo a meta
Um barco pousado no horizonte
Um nascimento prestes a acontecer
O nosso lobo ensaiaria recuos?
E se alguém, de repente
Um dia, pudesse parar o tempo?

DESTINO

Convoco forças
Encurvo silêncios
Em forjas de luz
Aconchego átomos
Mensageiros de sóis distantes
E cristais de neve
Ecoando cumes gelados
Caminho na periferia da vida
Com vagabundos e loucos
E meretrizes alucinadas
Rios de prata serpenteiam a meus pés
Na corrente flutuam solidões e maravilhas
Aniquilando-se adiante
Em penhascos liquidos
Há um cheiro de gengibre no ar
E um oceano de tempo a separar-nos.
Ao longe
Um dia vertical
Crava-se na periferia da noite
Irremediávelmente
Dispo-me de tudo
Resta uma vibração
Espesso-me em nevoeiros

COMANDANTE CHARANA

Julgava-o invencível, velho lobo do mar
Mas esta é a batalha maior
Maior que todos nós, sem vencedores
Contaram-me tantas histórias
De oceanos gelados e de outros tropicais
De gelos medonhos e sereias encantadas
Navegou todos os mares deste mundo
Nos temíveis mares árcticos
No fragor de montanhas abatendo-se
Nos grandes mares meridiões
Onde a água traça alinhavos na areia
Dono das tempestades
E de outras fúrias marinheiras.
Entre dois soluços do tempo
O último olhar liquido aos mares primeiros
Finalmente
Começou a grande viagem
Milhões de estrelas a balizar os rumos
E, a alumiar os caminhos que estão para vir
Viaje em paz, velho amigo.
Nós
Nós, sulcaremos os mares de novo
Mais confiantes agora.
Certos de que o Comandante nos protege
E nas intermináveis noites de acalmia
Continuaremos a contar e a ouvir
Tantas histórias fantásticas
Do velho marinheiro, dono das tempestades